quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Pode ser a gota d’água

Avançam na América Latina iniciativas de privatização da água. Movimentos e ongs progressistas debatem estratégias de resistência


Leandro Uchoas
do Rio de Janeiro (RJ)


“Deixem em paz meu coração / que ele é um pote até aqui de mágoa / e qualquer desatenção, faça não / pode ser a gota d’água”, dizia Chico Buarque, em uma de suas músicas. Assume, na canção, a persona feminina, como costuma fazer em alguns de seus lances mais geniais. Hoje, os versos bem poderiam representar o sentimento de comunidades tradicionais diante do avanço de grandes corporações e agências sobre o recurso natural. Mais estratégica que petróleo e eletricidade, e em crescente escassez, a água é fonte de preocupação de grupos econômicos por todo o mundo – e, por consequência, de seus vassalos agrupamentos políticos. A privatização do recurso avança em alguns países da América Latina e do mundo todo. Nos movimentos sociais e ongs progressistas, fixa-se a percepção de que resistir ao avanço liberal sobre a água signifi ca, hoje, resistir à própria sobrevivência do atual modelo econômico predominante.

Nos últimos dias 20 e 21 de julho, o Rio de Janeiro recebeu o seminário “Panorama político sobre estratégias de privatização da água na América Latina”. Organizado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), contou com a participação de 120 pessoas de 50 organizações. Entre eles, representantes de 13 países, a maioria da América Latina. O fórum serviu como perfeito termômetro do avanço da privatização da água no subcontinente e nos países centrais – embora, em algumas localidades, haja recuo. Entre os principais debatedores, um conceito se demonstrou quase consensual. O capitalismo mundial vive uma crise social, econômica e ambiental, e busca se reconfigurar para sobreviver – como sempre ocorre em momentos de impasse do capital. Dessa vez, no entanto, o labirinto é tão grande que o êxito não é certo, e o sistema pode ruir. Pode ser a gota d’água.

O principal objetivo do poder econômico seria transformar a água em mercadoria internacional. Para isso, avançam não somente sobre as reservas estratégicas – rios, lagos, aquíferos – como também sobre os serviços de água. Qualquer empreendimento relacionado a uma das duas possibilidades está sujeito a se tornar propriedade privada. Para isso, a cooptação de grupos políticos é regra mundial. O mercado elabora leis, tratados, acordos que são legitimados em conferências e seminários direitistas e viram legislação nos parlamentos dos países. Às comunidades, resta adequar-se à força. Os relatos também dão conta de que a escassez e as secas servem de argumento ao capital para impor suas soluções.

Elemento estratégico
Corporações dos mais diversos ramos econômicos estabeleceram, muitas vezes de forma declarada, a água como elemento estratégico. O avanço se dá como em lances de xadrez. Empresas como a Nestlé, a Coca-Cola, a Vale, a Odebrecht e a Camargo Correa deixam clara em sua movimentação a preocupação com o controle do recurso – sobretudo no Brasil. Maria Teresa Freitas, a “Teca”, fez longa exposição sobre o avanço da Vale sobre a Serra do Gandarela. Trata- se de uma região de Minas Gerais farta em água. “A empresa quer fazer lá seu segundo maior empreendimento, depois de Carajás. Admitem, no EIA (Estudo de Impacto Ambiental), que querem substituir outros lugares ‘em fase de exaustão’. É o último reduto de recursos do estado de Minas. Minério não se bebe”, protesta.

O documento oficial do seminário é sintético e claro. “Neste momento percebemos movimento intenso de apropriação da água no saneamento, na geração de hidroeletricidade, no agro e hidronegócio, nos processos industriais e mineração, nas transposições, nas concessões dos rios e lagos, na apropriação e comercialização das reservas de águas minerais”, diz. Mesmo os países de governo progressista ou de esquerda enfrentam o problema. Houve relatos de insegurança hídrica e avanço do mercado em regiões de países como Bolívia e Equador. Isso se deve, sobretudo, segundo os participantes do seminário, porque os movimentos econômicos estão submetidos a uma rede global.

No saneamento, a estratégia se dá de forma específica, comprovando um sentimento crescente – as privatizações não se dão apenas através da tradicional desestatização. As empresas do setor têm buscado a capitalização através de abertura de capital, além de terceirizar ramos das atividades. Também buscam estabelecer parcerias público-privadas. “Independente da privatização, o setor privado vai estar em todos os ramos. As terceirizações, por exemplo, que reduzem a qualidade do serviço prestado, são cada vez mais frequentes”, defendeu Edson Aparecido da Silva, da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU-CUT), que apresentou ricos dados sobre a água no país.

Impacto do agronegócio
É consenso que o agronegócio é o principal responsável pela contaminação da água em diversos países, ao lado do hidronegócio. No Brasil, a agroindústria busca terras localizadas próximas das reservas, superficiais e subterrâneas. Ao mesmo tempo que é o recordista mundial de consumo de agrotóxicos, o país também contém 27% da água doce do planeta. O resultado é simples questão de relacionar os dois elementos – boa parte da reserva hídrica mundial está sendo crescentemente comprometida. “A análise dos dados confirma o que temos debatido. Temos a consolidação da incorporação completa da vida à lógica de mercado. O desafio é romper essa lógica”, defende o mexicano Gustavo Castro.

A construção de hidrelétricas, sobretudo na América do Sul, também é um fator de preocupação. No Brasil, há o avanço sobre os grandes rios amazônicos, em outros momentos impensável. Nos países fronteiriços, atuam as mesmas empresas brasileiras, protagonistas, aqui, da preponderância do modelo. Muitas vezes, pressionam governos locais para a adoção de hidrelétricas, supostamente menos poluentes. Contam, para isso, com o suporte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que estimula não só essa política como a criação de grandes corporações brasileiras. Recém eleito presidente do Peru, Ollanta Humala tem se esforçado por frear o avanço desregulamentado de algumas empresas brasileiras em seu território. “Foi firmado, agora, um acordo energético entre os dois países. Estamos atentos”, avisa Rômulo Torres, do Fórum de Solidariedade do Peru.

Estas estratégias, coincidentes em países distintos, são elaboradas por intelectuais ligados ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Mesmo após o fracasso da devastação neoliberal, as organizações estariam recuperando prestígio ao moldar suas políticas com um falso verniz progressista. Há desconfianças de que existiria a intenção de transformar a água em commodity, com o preço unificado internacionalmente, proposta já apresentada pela Nestlé. Nada animador é o saldo da privatização já efetivada: baixa qualidade dos serviços, zonas de exclusão, tarifas elevadas, diminuição da produção de alimentos pela dificuldade de acesso, contaminação.

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