terça-feira, 16 de agosto de 2011

A insurreição urbana britânica

Não é preciso ser um gênio para prever que os motins hão-de regressar periodicamente se não ocorrerem transformações nesta sociedade fundamentalmente desigual e racista. Por Paul Tiyambe Zeleza


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Recentemente, durante quatro dias e quatro noites, as cidades britânicas, de Londres até Manchester, Birmingham e outras cidades menores, foram atravessadas pelas chamas da raiva. Os motins urbanos lançaram fogo a bairros e lojas, transformaram ruas em zonas de guerra, levaram a centenas de prisões e deixaram este ex-império em declínio profundamente abalado e em busca de respostas, de reparações, de culpados. Os políticos proferiram as banalidades previsíveis de líderes desligados da realidade, chamando aos motins, nas palavras do primeiro-ministro David Cameron, de “criminalidade pura e simples”. Especialistas pretenciosos afadigam-se em dar explicações e lançar insultos contra os manifestantes e os revoltosos, enquanto o público aturdido busca desesperadamente a restauração da ordem.

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Como é comum em momentos de perturbação nacional, posições ideológicas e discursos de longa data são frequentemente ressuscitados e reforçados. Previsivelmente, especialistas de direita fazem-se eco das posições do governo, condenando os manifestantes. The Telegraph recusa-se mesmo a chamá-los de “manifestantes”, preferindo taxá-los de “saqueadores, vândalos e ladrões”. Indo além dos “marginais” e dos “gangues”, lançam as culpas sobre os pais por abdicarem dos valores da família, da disciplina e da responsabilidade. Gostam de chamar a atenção para a juventude dos revoltosos. Nas palavras de um comentarista do jornal, “os pais ausentes têm grandes responsabilidades”. Outro acha que a polícia perdeu o controle porque “ficou tão sensível à questão racial que isso a impede de fazer o seu trabalho”; preocupam-se “mais em ter boas relações com a comunidade do que em impor a lei.” Lançam-se as culpas sobre o multiculturalismo por criar um clima permissivo para a cultura de gangues que se desenvolve na comunidade negra, uma cultura “que rejeita todos os princípios da sociedade liberal. É violenta, sexista, homofóbica e racista.” Um que tem o telhado de vidro e que lança pedras no do vizinho!
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Quanto aos liberais, eles se equivocam quando, por um lado, condenam a violência e, por outro, sentem pena dos manifestantes e apontam as condições que os levaram à explosão de fúria. Esta ambiguidade pode encontrar-se em The Guardian. Em um editorial o jornal foi inequívoco: “Os motins britânicos de 2011 tornaram-se um confronto definidor entre a desordem e a ordem. Neste confronto, e apesar de importantes ressalvas, só se deve estar de um dos lados. Tem de se pôr cobro aos ataques, à destruição, à criminalidade e ao reino do medo […] Pode discutir-se depois questões mais vastas. Hoje, neste momento de perigo, é necessário apoiar a polícia.” Enquanto isso, os colunistas do jornal atribuem os motins, diversamente, ao aumento da desigualdade e à implementação de drásticas medidas de austeridade; à brutalidade da pobreza e à psicologia explosiva de aspirações consumistas não realizadas entre os pobres; à cultura de exercício de direito e irresponsabilidade que perdeu as estribeiras entre os jovens; e ao resultado perverso de comunidades estimuladas a preencher vazios deixados pelo Estado.

Em momentos de insurreição nacional também é tentadora a busca de analogias. The Independent pretende que a Grã Bretanha experimentou seu momento Katrina. Tal como sucedeu em Nova Orleans, rebentaram os diques destinados a manter a ordem social e, do mesmo modo que a administração republicana do presidente Bush, o governo de coligação parece não saber o que há-de fazer, além de ameaçar com ações policiais ainda mais severas. Tal como com o furacão Katrina, este tem sido um momento angustiante para a Grã-Bretanha, fazendo as atenções incidirem nas classes subalternas, frequentemente invisíveis tanto para o Estado quanto para a elite. “Muito pouco tem sido feito por gerações sucessivas de políticos e servidores públicos para integrar estes indivíduos na sociedade normal. O rastilho desta explosão tem estado a arder desde há anos, talvez mesmo desde há décadas. Se algo bom pode emergir dos horrores dos últimos dias será que nós finalmente enfrentaremos a escandalosa exclusão de nossas classes subalternas.”

Alguns procedem a comparações mais evidentes. O caso dos motins franceses de 2005 é especialmente sedutor. Ambas estas explosões de fúria urbana foram desencadeadas por policiais matando homens negros em comunidades relativamente pobres, com uma vasta população minoritária e uma longa tradição de violência policial, de discriminação política e econômica e de privação de direitos. Os motins de Londres são ainda mais assustadores, afirma um observador, por conta de sua geografia social expansiva e de seu impacto. Enquanto as revoltas francesas estavam confinadas às banlieues [periferias], aos subúrbios remotos da linda Paris das elites e dos turistas, os motins britânicas estão “a chegar à porta das confortáveis residências das classes médias e médias-altas.” Isto é facilitado pelo fato de Londres ser uma cidade que se alastra e pelo fato de a demografia dos bairros pobres se caracterizar por uma mistura sócio-económico-étnica.

Outra analogia européia intrigante é a Grécia, onde a morte a tiro de um jovem em dezembro de 2008 desencadeou manifestações generalizadas, que agitaram Atenas ao longo de uma semana e pressagiaram os motins anti-austeridade dos meses recentes. Um autor que presenciou os dois conjuntos de manifestações observa que “ambos ocorreram sob governos conservadores que se recusaram até mesmo a reconhecer, e muito menos a tentar responder, às razões da insatisfação.” Como deveria ser desnecessário dizer, “uma violência urbana de tamanha intensidade não pode ser meramente atribuída a motivos oportunistas […] Se a Inglaterra quiser aprender com a violência urbana de outras cidades européias, deverá incidir a atenção nas motivações e nas razões de queixa dos participantes. Se não o fizer, na próxima vez as coisas serão piores e mais dolorosas, como sucedeu em Atenas.”

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Todas estas comparações ajudam a esclarecer a insurreição britânica de 2011. Ainda mais pertinente é situar os recentes motins generalizados no contexto da história britânica. Nos séculos XVIII e XIX abundaram na Grã-Bretanha os motins desencadeados pela insatisfação política, econômica ou social. No século XX, a questão racial cada vez mais juntou a sua dinâmica incendiária aos surtos periódicos de perturbações e de insatisfação pública. No pós-guerra, o grande número de imigrantes oriundos do Caribe, da África e da Ásia, todos eles chamados “negros”, quebrou os elos de caráter inglês e branco, de caráter britânico e europeu, e reorganizou as relações e as tensões entre raça e classe.

Raça e classe sempre estiveram entrelaçadas no contexto da Grã-Bretanha imperial, a principal nação comerciante de escravos no século XVIII e a principal potência colonial nos séculos XIX e XX. Isto só para chamar a atenção para a circulação permanente das ideologias de raça e de classe entre a Grã-Bretanha e o seu império, que marcou as relações sociais tanto nas periferias coloniais como no centro metropolitano durante o apogeu do império e posteriormente. Em resumo, a Grã-Bretanha tem um problema persistente de desigualdade e exclusão raciais e de classe, que leva ocasionalmente à eclosão de motins. No pós-guerra irromperam motins raciais com uma frequência previsível: os motins de Notting Hill em 1958, os motins de Brixton em 1981, os motins de Handsworth e Broadwater Farm em 1985 e os motins de Brixton e Bradford em 1995.
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É claro que variam os contextos específicos de cada uma destas revoltas, mas a situação subjacente, as condições estruturais, permanecem profundamente enraizadas nas hierarquias e marginalizações raciais e de classe da sociedade britânica, sustentada por uma classe política cada vez mais incompetente. Quanto aos motins de 2011, importa especialmente considerar dois contextos: primeiro, a redução das oportunidades econômicas e, segundo, a decadência da democracia. Tal como boa parte da Euro-América, a Grã-Bretanha foi devastada pela Grande Recessão e a economia está mancando desde que foi declarado oficialmente o termo da recessão. Na última estimativa, o Banco da Inglaterra “reduziu para 1,5% sua estimativa de crescimento em 2011 no Reino Unido, quando a previsão anterior fora de aproximadamente 1,8%, e baixou a sua estimativa para 2012 de 2,5% para cerca de 2%.”
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A adoção de um programa drástico de austeridade pelo governo de coligação, envolvendo cortes massivos nos setores sociais e de serviços, incluindo a educação, ameaça converter a prolongada recessão, sentida pela classe trabalhadora e pela classe média inferior, numa depressão permanente. Em consequência, aumentou o nível de desemprego para essas classes, em que as minorias raciais jovens têm uma participação muito superior à média. Assim, em grande medida os motins representam uma irrupção dos marginalizados, numa altura em que os seus dirigentes políticos gozavam férias no estrangeiro, das quais ignominiosamente regressaram a um país em chamas. Não há dúvida de que estes motins britânicos são mais multi-raciais do que os motins de 1981 ou 1985, e muito mais ainda do que os motins franceses de 2005. Isto os torna potencialmente mais ameaçadores e é mais difícil para o Estado contê-los com ataques baratos contra os “hooligans negros” ou contra as promessas vazias do multiculturalismo.

No fundo, este é um país falido liderado por uma classe política falida, apesar da retórica barata de “Grande Sociedade” do primeiro-ministro Cameron ou da extravagante encenação das núpcias reais. O Estado e seus funcionários policiais estão amplamente desacreditados. A capacidade da classe política para administrar a economia em benefício da maioria mais do que da minoria foi severamente danificada pela Grande Recessão e evaporou-se com o brutal regime de austeridade. Enquanto isso, políticos, policiais e a imprensa ficaram desacreditados pelo escândalo de escutas telefônicas envolvendo o império midiático de Murdoch. Os imperadores da classe política britânica nunca apareceram tão nus.

Muitas pessoas comuns não se deixaram impressionar, e menos do que todos as minorias marginalizadas e os trabalhadores mal pagos e subempregados. Alguns perguntam abertamente por que seus saques são piores do que os das elites. Para citar um escritor, “Enquanto os banqueiros saquearam publicamente as riquezas do país e não lhes sucedeu mal nenhum, não custa a entender o motivo por que aqueles que são excluídos do trem da alegria podem pensar que têm direito a meter no bolso um celular [telemóvel]. Alguns dos amotinados são explícitos. ‘Os políticos dizem que nós saqueamos e roubamos, mas eles são os verdadeiros gangsters,’ disse um deles a um repórter.”

Nas palavras pungentes de um comentarista, “Os amotinados de Londres são o produto de uma nação que se desmorona e de uma classe política insensível que lhes virou as costas.” A amplitude do desastre social é surpreendente. “Na bolha da década de 1920, os 5% mais ricos apoderaram-se de 1/3 da renda pessoal. Hoje, na Grã-Bretanha, a desigualdade em salários, riqueza e oportunidades de vida é a maior desde então. Só no ano passado, a fortuna conjunta dos 1.000 mais ricos da Grã-Bretanha subiu 30%, atingindo 333,5 bilhões [milhares de milhões] de libras.” O autor lamenta que “sucessivos governos britânicos conspiraram para gerar pobreza, desigualdade e desumanidade, exacerbadas agora pela perturbação financeira” e alerta, “Olhem para os bandos de jovens destruidores nas ruas das cidades e chorem todo o nosso futuro. A ‘geração perdida’ está a juntar-se para a guerra.”

O segundo contexto é a decadência da democracia britânica, a desestabilização ou desmobilização da participação popular em nível local e a centralização do poder manifestada pelo crescimento da vigilância eletrônica para a população como um todo e da vigilância policial contra os grupos marginalizados. Como observou um jornalista veterano, “Compreende-se que forasteiros presenciando os motins urbanos nesta semana pudessem pensar que as cidades britânicas sejam comandadas pela polícia e pelo ministro do Interior. É certo que existem conselhos municipais e que Londres tem um prefeito eleito, mas em lugar nenhum os vemos nos postos de comando. Não têm poder real e, portanto, gozam de pouco ou nenhum status como líderes cívicos. Na linha de frente está a polícia, e por trás dela apenas o poder central do Estado […] Não existe nada que em qualquer nível de governo substitua uma democracia adequada, aberta, receptiva.”

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O crescimento da vigilância eletrônica foi estimulado pelos atentados terroristas do dia 7 de julho de 2005. Por ocasião de uma visita a Oxford e Londres, há três semanas atrás, eu estava atônito ao ver quão extensa a vigilância eletrônica se tornou neste país. Em 2009, um jornal conservador, The Daily Mail, mostrou-se chocado: “A Big Brother Grã-Bretanha tem mais câmeras de vídeo de circuito fechado do que a China.” Segundo este jornal, “Existem aqui 4,2 milhões de câmeras de vídeo de circuito fechado, uma para cada 14 pessoas. Mas no Estado policial da China, com uma população de 1,3 bilhões [milhares de milhões], há apenas 2,75 milhões de câmeras, o equivalente a uma para cada 472.000 cidadãos.”
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Tal como sucedeu nos Estados Unidos, as medidas antiterroristas adotadas pelo governo britânico ameaçaram corroer a liberdade interna. Os suspeitos de sempre nos Estados de vigilância policial são as minorias pobres e raciais. As relações entre a polícia e essas comunidades, particularmente a juventude, se tornaram mais intromissoras e repressivas. Tão flagrante é o fichamento racial que “As pessoas negras têm 26 vezes mais probabilidades do que as brancas de ser abordadas pela polícia e sujeitas a buscas na Inglaterra e no País de Gales” (em comparação, há apenas 50 professores universitários negros num total de 14.000 professores nas universidades britânicas). E, assim, as lições dos motins das décadas de 1980 e 1990 ficaram perdidas na demência da vigilância antiterrorista e da centralização do poder de Estado.

Viu-se que a conjugação da austeridade econômica e da brutalidade policial é uma mistura combustível que tem alimentado as chamas da fúria nas cidades britânicas e agitado o país. Não é preciso ser um gênio para prever que os motins hão-de regressar periodicamente se não ocorrerem transformações nesta sociedade fundamentalmente desigual e racista. Como consequência desta insurreição, o modelo de austeridade britânico perdeu sua aura e agora serve como alerta para os limites da paciência popular perante as devastações selvagens do neoliberalismo, que levou à Grande Recessão e está desesperadamente tentando renascer das cinzas.

Este artigo foi publicado originalmente em The Zeleza Post.
Acerca do autor, veja aqui.
Traduzido para o Passa Palavra por Lucas Morais.

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