domingo, 27 de março de 2011

Nunca antes na história deste país…

O programa da esquerda brasileira está sendo parcialmente realizado como etapa necessária ao desenvolvimento do capitalismo, contra o qual luta desde há muito. Por Passa Palavra
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes no Brasil se foi tão “engajado” – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. E aqui reside o que talvez seja um dos mais dramáticos paradoxos de sua história: o programa da esquerda brasileira está sendo parcialmente realizado como etapa necessária ao desenvolvimento do capitalismo, contra o qual luta desde há muito.
tarzan-3Há tentativas bastante variadas de elucidação deste paradoxo, das mais simplórias às mais elaboradas. Uma delas, a mais simplória, diz que o caso é de “traição” por parte do Partido dos Trabalhadores (PT). Ora, certamente cabe perguntar: houve traição realmente, ou se trata de fazer ouvidos de mercador às promessas que efetivamente foram feitas? Basta analisar não somente os documentos internos do PT, mas também a prática de suas administrações, para que se veja: não traíram ninguém, apenas cumpriram o que prometeram. A Carta ao povo brasileiro, mandada publicar por Lula em sua campanha eleitoral de 2002 e cumprida à risca até o último dia de seu segundo mandato, é exemplo cabal desta desatenção.
Uma outra linha de interpretação, mais conformista, deriva da inserção da esquerda brasileira nos postos mais altos e importantes do Governo Federal (desde o Estado Novo varguista, a única que realmente conta dentre as três esferas federativas brasileiras). Conseguida a partir das sucessivas vitórias eleitorais das coligações de (centro-)esquerda capitaneadas pelo PT desde 2002, tal inserção representaria também a chegada ao poder dos restos de um programa de lutas de mais de trinta anos, cujas origens imediatas remontam à resultante de idéias amalgamadas pelo clássico tripé “Comunidades Eclesiais de Base + sindicalismo autêntico + esquerda revolucionária semiclandestina” que sustentou a criação do PT. Este programa “popular” estaria sendo cumprido, apesar de a “correlação de forças” – sempre ela! – impor sucessivos recuos programáticos. As disputas entre os Ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário quanto ao modelo de agricultura a reforçar no país; a disputa entre os setores “desenvolvimentista” e “ambientalista” dentro do governo federal; a pressão pelas casas decimais para cima ou para baixo nas reuniões do Conselho de Política Monetária (COPOM); a desestruturação dos ministérios e secretarias especiais “identitários”, como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), e a polêmica em torno do Estatuto da Igualdade Racial; tudo isto seria explicado pela “correlação de forças”, transformada no infalível abracadabra dos recuos. Mas cabe perguntar: quem controla quem neste jogo de barganhas e enfrentamentos internos dentro do Estado? Os recuos programáticos são feitos porque a correlação de forças políticas é realmente desfavorável à esquerda, ou porque os setores da esquerda hoje no governo desistiram, por acomodação ao Estado, de testá-la de verdade?

diz que a “virada à direita” e o “pragmatismo” resultam da ocupação paulatina, por setoresda esquerda, de espaços em conselhos gestores de fundos públicos (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS, Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT), de bancos de investimento (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES) ou de fundos de pensão (PREVI, PETROS, etc.). Os setores da esquerda que chegaram a tais posições exercem controle direto sobre algumas das principais forças motrizes da economia brasileira. E assim, de grão em grão, se chegou ao paradoxo de “trabalhadores” controlarem os meios de produção, embora os trabalhadores sigam explorados – este, o real conteúdo da “conversão à cartilha neoliberal”. Embora o esmaecimento das fronteiras entre o “público” e o “privado” seja traço histórico da política brasileira desde há muito, estes setores da esquerda agora participam – e não raro patrocinam – suas formas mais avançadas. Reconhecendo a esta interpretação o mérito de entrar nas lutas internas da própria esquerda, cabe ainda assim perguntar: quem são estes setores? De onde vieram, o que querem, para onde vão? Que jogo político levou a esta opção, e que metamorfoses sociais resultam dela? Que ligação têm estes setores com práticas parecidas ocorridas em outros tempos e lugares?
Os “descaminhos” da esquerda não surgem somente a partir das “traições” de certas lideranças, mas também – e fundamentalmente – das disputas internas que atravessam suas organizações. Nas origens do programa político que a esquerda brasileira apresenta hoje – totalmente funcional ao desenvolvimento do capitalismo – há traços não apenas do ideário “democrático-popular” do “tripé clássico” já referido, mas também de todas as polêmicas que marcaram o nacionalismo revolucionário brizolista, o socialismo democrático do Partido Socialista Brasileiro (PSB), as críticas das organizações dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) surgidas a partir da década de 1960, o programa “etapista” do antigo PCB, as lutas das oposições sindicais, as ideias dos chamados “autonomistas” que compuseram o núcleo ideológico inicial do PT e de personalidades isoladas, etc. É preciso refletir sobre tão controverso quinhão. Do espólio das lutas populares herdamos – aqui sim, por hábito – a noção de que o Brasil é um país subdesenvolvido. Mas aquilo que vemos diante dos olhos mostra outra coisa. E esta outra coisa, que entra olhos adentro, é preciso vê-la através dos olhos dos outros, pois o hábito torna-se cegante depois de certo ponto.
Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – campo onde se desenvolvem as empresas transnacionais de origem brasileira: Marcopolo, Colcci, Copersucar, Grupo André Maggi, Camargo Corrêa, Embraer, Vale, Braskem, Grupo Votorantim, Fibria Celulose, WEG, Duratex, JBS, Traffic, Odebrecht, Brazil Foods, Suzano, Queiroz Galvão, etc. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Alguns exemplos. A Agência Brasileira de Cooperação tem orçamento anual de cerca de R$ 52 milhões, e pulou de 23 projetos de cooperação técnica no exterior em 2003 para 413 em 2010. Segundo The Economist (15 jul. 2010), o total de investimentos brasileiros na cooperação para o desenvolvimento, somando-se nesta rubrica contribuições ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), apoios pontuais aos palestinos na Faixa de Gaza, investimentos no Haiti e empréstimos internacionais feitos pelo BNDES, pode chegar a US$ 4 bilhões [milhares de milhões] – mais que, por exemplo, os investimentos da Suécia ou do Canadá. Países da comunidade lusófona (Moçambique, Timor Leste e Guiné Bissau) estão no topo da lista de beneficiários, mas a cooperação para o desenvolvimento vinda do Brasil estende-se também sobre a América Latina. Cabe perguntar: tal como a cooperação para o desenvolvimento feita pelos países imperialistas “clássicos”, esta “ajudinha” não seria uma das formas de exercício do soft power sobre número cada vez maior de países? Como é possível entender a cooperação para o desenvolvimento brasileira dissociadamente da incessante busca por um assento no Conselho de Segurança da ONU e da constante participação de tropas brasileiras nas Forças de Paz da ONU? É isto mesmo? Ou ainda temos que “deixar de pagar a dívida”?
Há outros sinais importantes. Que dizer quando 80 organizações, movimentos sociais e sindicais da Alemanha, Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Equador, França, Itália, Moçambique, Nova Caledônia, Peru e Taiwan organizam o Encontro Internacional de Atingidos pela Vale e acusam uma empresa “brasileira” de formação de milícias, de superexploração de trabalhadores e de ataque a sindicatos, sem contar os incontornáveis danos ao meio ambiente? Seria este comportamento semelhante ao da Petrobrasna Bolívia e na América Central, ao da Itaipujunto ao Paraguai, ao do Grupo Votorantim em diversos países, ao da Odebrecht na África e ao da Mendes Júnior no Oriente Médio? É isto mesmo? Ou ainda temos que lutar apenas e tão-somente contra o “imperialismo ianque”?
Não há respostas prontas para as perguntas emersas do desnorteio em que se encontram setores cada vez mais expressivos da esquerda brasileira no período mais recente de lutas. A tais questões ainda não se oferecem as respostas tranquilizantes que se espera das cartilhas de formação, como quem busca abrigo em meio ao furacão. Apesar disto, há uma quase certeza, um fio desgarrado da meada, a orientar quem tem o internacionalismo como método e só compreende a emancipação dos trabalhadores como resultado de suas próprias lutas e da consolidação de sua força política. Puxando este fio, pode ver-se algo no caminho rumo às – sempre provisórias – respostas que surgirão da análise das lutas sociais que vivemos: nunca na história deste país se foi tão imperialista. E o pior: muita gente – inclusive de esquerda, inclusive autoproclamados “revolucionários” – acha isto ótimo. É a partir daí, e das lutas disto decorrentes, que é preciso buscar as respostas pelas quais se anseia – algo com o que a série de artigos aberta com estas breves provocações pretende colaborar.


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