domingo, 12 de agosto de 2012

Paixão: ame-a ou deixe-a

Sobre alteridade, infinitude e fraternidade




Há quem diga que apaixonar-se é uma dádiva, um presente. Uma conexão com o divino, com os céus. Mas há aqueles que nem acreditam em céus, muito menos em deuses - são os céticos. A paixão, sentimento avassalador, condição terrena, carnal, visceral... Todos nós estamos sujeitos a ela. É o alumbramento de Manuel Bandeira, o sofrimento de Werther, pra não falar de Romeu e Julieta, o clássico. Deixemos o clichê, isso pra não tornar a coisa pior do que já está. O amor romântico nem sempre existiu. O liberalismo, o Romantismo e os filmes norte-americanos se ocuparam dessa criação. Daí o paradigma de liberdade individual (ou individualismo) e, com isso, a ideia de auto-realização. Não existe nenhuma lei – e não é para existir nenhuma família - que interfira na sua escolha. Só depende de você! Talvez por isso a gente sofra tanto, porque só depende de nós. Quando nos frustramos, a culpa é toda nossa. Essa liberdade individual, de escolher quem vai ser nosso casal, como dito, nem sempre existiu. Parece que com isso tudo ficou melhor, mais fácil e mais justo. Mas a questão é que a paixão espontânea parece que não tem cumprido com o seu papel, desde que tornou-se livre. Antes os casamentos eram arranjados e as mulheres é quem mais se submetiam. Mas depois disso, quem disse que a paixão cumpriu o seu papel? Deixemos o papel da paixão pra depois.

O que nos interessa agora é... Peraí, alguém pode me responder o que é paixão? Segundo a psicanálise, a paixão é essencialmente platônica. O sujeito apaixonado se projeta no outro idealmente. O sujeito apaixonante é ideal, tão ideal que você quer ser ele. O amante quer ser o amado. Ele, definitivamente, não se basta. O outro é melhor que ele, claro. Faz de tudo pelo outro, chegando até a submeter-se. Todos os nossos princípios liberais de “ser ativo”, autônomo, livre e dono de si mesmo vão por água abaixo. Eu não sou mais eu, eu sou o outro, eu faço tudo pelo outro. Auto-anulação. Paixão, ainda na psicanálise, é uma patologia. Do radical em latim passion, que tem tudo a ver com passividade. E a passividade está longe de ser o ideal contemporâneo de sujeito ativo e determinado que busca o mérito. Ou seja, a paixão parece ser um sentimento meio anacrônico, um tanto transtemporal, não tem época, nem lugar, atravessa todas as eras. Apesar de nem sempre ter sido percebida, respeitada ou valorizada. A paixão foge às regras da razão. Isso todo mundo já sabe. Né?

Não é tão difícil perceber que quando estamos apaixonados o racional vai embora. Somos só carne, marionete de um fogo infernal que nos invade. De novo, a passividade. Mas a paixão, atemporal como é, ela existe por um motivo virtuoso por demais, ao contrário do que geralmente acreditamos ser a paixão, como aquilo que nos invade e, por nos tornar tão imbecis, é algo realmente danoso. É um prejuízo. O que se diz é que paixão é ego. Só de pensar que podemos nos apaixonar por alguém e nos viciar naquele rosto bonito ou naquele corpo perfeito, ou até mesmo naquelas palavras tão bem ditas... Cada elemento desse parece que toma conta de todo o conjunto, fazendo-nos acreditar que aquele ser é perfeito. E aí vem a posse, o ciúme. Esses são os piores. A paixão, acreditamos, não tem nada a ver com amor. Paixão é ego, beleza, quase um fetiche, um totem. Não devemos cultivar porque quanto mais nos deslumbramos, mais nos tornamos irreflexivos. O amor é o seu oposto, não é? O amor tem mais a ver com uma decisão, com esforço em cuidar. A paixão, me parece, é a própria loucura. Pode nos tornar obsessivos, obcecados. Mas aí que está o engano. A paixão - e aí entramos no seu papel - não está tão longe do amor como parece. Ela vem de supetão, de surpresa, mas a única coisa que ela quer é nos fazer amar. A paixão nada mais é do que o impulso natural (da natureza) de nos fazer amar. Não se trata de uma “porta para o amor”, como se diz e se acredita normalmente que o amor seja um consolo que nos resta depois daqueles quatro primeiros meses de relacionamento em que o outro já não é mais tão encantador e, portanto, só nos resta amar. Não se trata disso! É muito mais do que uma “porta”. Eu diria que paixão e amor são quase a mesma coisa. Mas... alguém pode me responder o que é o amor?

Ah, essa é fácil. O amor é a coisa mais bonita que pode existir. Segundo o que diz o filósofo Humberto Maturana, o amor é um domínio de ações que considera o outro como legítimo outro na convivência. Ou seja, o outro legítimo, de tão diverso, pode ser um universo. De tão diferente de mim, deve ser respeitado, afinal, eu não consigo controlar o universo, muito menos o que não conheço. É aí onde mora a alteridade. Considerar o outro como legítimo outro é compreensão absoluta. Já defini o amor algumas vezes como compreensão absoluta. Aquela história de amar o outro acima de seus pecados - para alguns cristãos, perdão, que é mais forte que tudo. Este outro pode ser infinito e o segredo do amor está em dar-se conta disso. Porque ao tentar classificar o outro, você estará automaticamente cooptando-o para um domínio de nomeação existente no seu imaginário e isso tem tudo a ver com controle. Os nossos problemas sociais, as nossas dificuldades em tornar o mundo mais habitável, mais bonito, tem a ver justamente com o não respeito a alteridade, é lógico. Pra Adorno, o pensamento identitário é justamente isso, tentar classificar, categorizar, recortar a realidade dentro de um plano já conhecido porque o ser moderno, científico, cartesiano (porque não quadrado) precisa de um referencial. Então esse recorte assume ou a característica, a nomeação que já se conhece, ou, se não se conhece, assume o véu, a roupagem do que é exótico, pejorativamente estranho (bizarro). Ou as duas coisas! Por exemplo, a homossexualidade como é vista normalmente: é estranho, não se conhece (ou não se quer conhecer) e então se classifica como doença. Mas doença está dentro dos parâmetros médicos convencionais, ou seja, doença é uma categorização conhecida, uma verdadeira anomalia.

Essa dificuldade de furar o véu do pensamento identitário é o que nos faz ignorantes, tão ignorantes que podemos ser atrozes uns com os outros. No fundo, nos afundamos porque queremos perder a capacidade de assombramento, de aceitar o desconhecido. Queremos prever e contabilizar tudo. Tá errado!  Por isso, segundo os frankfurteanos da Teoria Crítica, o nazismo nada mais é do que o ápice de uma sociedade capitalista racionalizante, que quer recortar tanto a sociedade que, literalmente, joga fora milhões de pessoas. Esse vício de “nomeação” do outro, acaba sendo a representação do que significa o capitalismo. Ora, o que é o princípio da equivalência geral em Marx? Tratar coisas qualitativamente distintas de forma quantitativa – o dinheiro faz isso. É aí onde mora a maldição do capitalismo. Dormimos e acordamos com a ambição de medir tudo. Isso nos aprisiona. Ou seja, a “equivalência”. O amor, para não sair do nosso foco, ele ultrapassa isso. O amor, como compreensão absoluta, ele não mede, não categoriza, ele simplesmente compreende. Segundo Maturana, ainda, o amor é responsável pela manutenção da espécie humana. Ele não tem fim. O amor tudo compreende, tudo entende, tudo perdoa. O amor é extra-político porque ele não disputa. A paixão, para vossa surpresa, está dentro disso. A paixão está dentro do amor. Aliás, a paixão é amor!

Como assim? Paixão, um impulso da natureza, é como se ela nos dissesse: ame! O amor é a pura ligação entre os seres humanos, é o que os faz continuar vivendo, como a força propulsora do motor do universo – clichê demais, mas é verdade. Por isso nos submetemos ao outro de forma tão “entregue” quando estamos apaixonados, porque, oras, entre eu e o outro não existe o abismo da individualidade (ou do individualismo), eu posso ser o outro, o outro pode ser eu, no máximo “vou submeter-me a mim mesmo”. Em outras palavras, é a alteridade infinita. A alteridade, infinita, é tão extensa que eu, seguramente, estou inserida nela. Somos parte de uma coisa só e essa coisa só é o coletivo. Isso nós podemos traduzir como fraternidade. E, contrariando todo o ideal de autonomia, atividade e liberdade individual, vai aqui uma frase de efeito: não há problema em submeter-me ao outro, desde que o outro se submeta a mim. Ou seja, se Marx estivesse vivo, ele diria (e eu tenho certeza disso): se todo mundo for proletário, não haverá patrão! Eu poderia dizer o contrário, porém, pensemos: a relação de um patrão para com seu empregado é de imperativo, de individualismo, enquanto que a relação de um empregado para com o seu patrão é de servidão. E é o elemento da servidão que eu quero destacar. Servir ao próximo, por mais cristão que isso possa parecer. O acordo recíproco de servidão, no sentido de compreensão máxima. No anarquismo isso tem um nome bonito, é o apoio-mútuo, apesar de os anarquistas nem sempre exercitarem isso.

Tentando fazer você não se perder absolutamente e não duvidar de tudo o que estou dizendo, eu diria simplesmente que, quando você se sentir apaixonado/a, ame! Eu poderia dizer, também, que quase todas as vezes que sofri por alguém, não foi por falta de paixão correspondida, foi por falta de amor. Quando a natureza diz “ame” e você não respeita isso, alguém sempre sofre. Calma, o amor não é nem sobrenatural, nem aquilo que aparece na sessão da tarde (ou na novela). É o reconhecimento do outro como legítimo outro e, acima de tudo, como sujeito. E como bom sujeito, complexo (infinito). E como infinito, incapaz de ser controlado - muito menos esquecido. A amizade exercitada entre os seres apaixonados é a maior prova de amor que pode existir. Mas, enfim, eu vou parar por aqui. Vou parar antes que isso tudo acabe virando um romantismo piegas ou um texto de auto-ajuda. Vou terminar fazendo um último apelo aos apaixonados. Lembrem-se, sempre, que o impulso da paixão, a força de Eros, a autêntica pulsão de vida e excitação precisa de um campo fértil para ser plantada e esse campo fértil deve ser infinito, afinal, tudo que é infinito não pode ser governado. Estamos falando de liberdade. Liberdade individual? Nunca. Não pode ser infinito se for individual (“a minha liberdade estende a sua ao infinito”). Por fim, o contrário do amor é o medo. Viva o amor no seu mais alto grau de profundidade. Viva a alteridade. Viva o amor-livre. Um salve a todos/as nós apaixonados/as!

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