terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Miséria Neurótica e a Pobreza Real.


Transcrição da aula pública do Prof. Christian Dunker





A Miséria Neurótica e a Pobreza Real

Christian Ingo Lenz Dunker

1. A Miséria Neurótica e o Sofrimento Administrado

Um mundo que nos ensina qual sofrimento é legítimo e qual deve ser excluído. Um mundo que estabelece sem ambiguidade qual forma de insatisfação é produtiva e qual insatisfação deve ser reprimida. As formas de insatisfação já vem pré-fabricadas. Todos os tipos de sofrimento já foram catalogados.

Você tem uma reclamação a fazer? Não há problema algum, nos já pensamos isso para você também. Pegue sua senha no caixa e espere em fila a hora de ser chamado. Se preferir use nosso serviço de Apoio ao Consumidor ou nosso Telemarketing. Você quer reclamar? Entra na fila.

Entendo que é exatamente contra isso que os movimentos de ocupação, que se disseminam pelo mundo, estão produzindo uma alternativa.



Freud chamou de miséria neurótica este estado de angústia que não é sentida como angústia, mas transformada em medo de objetos e situações continuamente produzidos para satisfazer e reproduzir este desamparo. A miséria neurótica tem horror ao mal-estar, tem horror ao estar-mal. É melhor não-estar do quemal-estar. Para este tipo de miserável toda diferença deve ser segregada. Tudo o que ainda não tem nome deve ser punido. Tudo o que é estranho à minha forma de gozo deve ser interditado. Pois a miséria neurótica é a sensação permanente de que minha insatisfação tem uma causa: foi o vizinho que roubou este fragmente de gozo que me falta.

E o meu vizinho é só alguém como eu, só que nos piores dias. Sou eu ali onde eu não me reconheço mais. É o negro, é o pobre, é o homossexual, é a mulher, é o migrante, é o estrangeiro, são todos aqueles que vem “roubar o pedacinho que falta em meu estado de felicidade”. Ora este estado de felicidade feito de segurança, anestesia, covardia, adaptação, conformismo, este é a felicidade miserável do neurótico que ele defende até o fim, que ele ama mais que a sim mesmo.

É este que Raul Seixas, chamou de “padre, médico, doutor ou policial, que acha que está fazendo a sua parte para nosso belo quadro social”.

Reich chamou este personagem de Zé Ninguém. É aquele que abre mão de sua satisfação sexual e do risco representado pelo desejo, em troca do acolhimento bestificante da normalidade. O Zé Ninguém não é o pobre que sofre, mas aquele que desistiu de ver em seu sofrimento a expressão de um desejo e a articulação de uma demanda. Seu problema passou a ser seu vizinho.

A miséria neurótica é a perda da capacidade de sentir dor, de experimentar a indignação. É a suspensão da experiência, substituída pela anestesia, pela identificação a um mestre, pela repetição de laços cujo único objetivo e esquecer coletivamente a contradição. A miséria neurótica é empobrecimento da experiência. A miséria neurótica é um tipo de servidão voluntária, ou seja, de servidão pela qual transferimos para o outro os destinos de nosso desejo e administração de nosso sofrimento. Ou seja, deixamos que o Outro empreenda nossa própria impotência, que ele dê nome ao que nos falta, que ele colonize nossa própria capacidade de dar nome ao mal-estar que ainda não sabemos do que é feito.

A miséria neurótica é a impossibilidade de experimentar o que Axel Honneth chamou e sofrimento de indeterminação. Ou seja, o reconhecimento de que uma vida que vale a pena se vivida e vale a pena ser contada precisa de experiência produtivas de indeterminação e não apenas de determinação, ordem e sacrifício. Para o miserável neurótico, tudo o que indeterminado é perigoso, por isso ele jamais se apaixona realmente, por isso também todo compromisso lhe parecerá inautêntico.

A pobreza real é outra coisa.





2. Ocupação e Violência:

Entendo que é exatamente este tipo de problema, ou de insatisfação com a gestão da insatisfação que está no centro da recente invasão da Reitoria da USP pelos alunos. Alguns vão dizer que se trata de um bando de desordeiros privilegiados, que não querem se submeter às leis mais comuns que valem para todos. No fundo são alunos defendendo seus privilégios de classe, dentro dos muros deste abrigo, no qual as leis são suspensas, que é a Universidade. Quase sempre vocês encontrarão palavras como desordeiros, bando, horda, quando não são criticados por seus costumes e suas vestimentas incivilizadas.

Mas o que é um bando senão um grupo sem uma ordem, um grupo que não tem motivo ou finalidade senão o saque e a pilhagem, como as hordas bárbaras que invadiram o Império Romano. Ora, o problema deste tipo de bando é que eles não seguem os regulamentos feitos para o setor de protestos, desacatos e insubordinações. Eles não estão seguindo o manual que administra a forma como devemos fazer nossa insatisfação trabalhar.

Afinal, o que vocês querem? Fumar maconha sob tolerância policial? Querem ser tratados com o privilégio de estar acima da lei? Desobedecendo a própria deliberação do grupo estudantil? A P.M. está em toda parte, porque não estaria também no Campus?

Estas são perguntas justas. Não há nada de errados com elas.

Ocorre que uma das formas de administrar o sofrimento, reduzindo-o à miséria neurótica é acreditar que existe uma e só uma forma de justiça. É fazer a justiça o equivalente do direito e o direito o equivalente do ordenamento jurídico.


3. O Problema da Flauta

Amarthia Sean, prêmio Nobel de Economia em 1998, mostrou como esta concepção unívoca da justiça não pode ser mais admitida, se queremos pensar o estado de inequidade, de justiça não equitativa, que tomou conta de nossa forma de vida. Uma demonstração simples de sua tese é a famoso problema indiano das três meninas e uma flauta.

Imaginem vocês que tenhamos três meninas e apenas uma flauta, a qual delas devemos dar este instrumento musical?


Para aquela que sabe tocar flauta. E todos as três concordam que ela é de fato a única que sabe tocar este instrumento e que, portanto, pode se beneficiar do fato de ter uma flauta. Afinal do que serviria uma flauta para quem não sabe usá-la?


Para aquela que não tem nenhum outro brinquedo. E todas as três concordam que ela é de fato a única que não tem mais nada para brincar, que uma flauta, mesmo que ela ainda não saiba tocar, é o estímulo e pretexto para que ela aprenda a tocar. Mas isso vai tomar tempo, e agora e se pensamos só no agora e no amanhã, e não o depois de amanhã, a flauta de pouca valia será para esta segunda menina.


Para aquela que construiu a flauta. E não há nenhuma dúvida entre elas que é esta terceira menina a construtora da flauta. Ora, o trabalhador deve ter direito ao produto de seu trabalho. O sentido e o direito de propriedade é o elemento mais seguro e firme de nossa concepção de justiça desde o Direito Romano. E até mesmo Marx (até quase o final de sua obra defendia uma ideia parecida por esta).

Não se trata de dizer que a justiça é relativa e por isso ela é arbitrada por um código e administrada por instituições impessoais, como a polícia e pelo Estado que possui, nesta medida, o monopólio da violência e da coerção.

O problema é que as três meninas tem razões. E que todas as três formas de razão precisam ser reconhecidas. Porque cada forma de razão corresponde a um tipo de sofrimento. E é isto que o sofrimento aspira sempre, o reconhecimento de algo que ele mesmo não sabe o que é. A miséria neurótica acontece quando aquele sujeito se fixa a um saber, dando consistência a uma única forma de demanda, e consequentemente de justiça.

Justiça quer dizer: igual para todos ou a cada um conforme suas necessidades?

Quando se diz, então que os revoltosos da USP não sabem o que querem, isso só é um argumento crítico para os que querem “empacotar” esta demanda de reconhecimento em uma fórmula administrativa de desativação da indeterminação. Quem não sabe dizer exatamente qual é a solução para o problema, na forma como ele foi colocado, por favor, vá pensar no cantinho da sala e volte quando tiver a solução.

Durante anos ouvi de meus amigos empresários e trabalhadores do chamado “mundo corporativo” que a vida é assim mesmo, você precisa fechar o próximo “quarter”, prometer coisas que não vai cumprir, por em prática mentiras para acionistas, maquiagens nos balanços, predação das relações de trabalho. É este o jogo, todos contra todos e o Estado que fique fora disso. Vinte anos ouvindo isso para na primeira quebra, aliás prevista e sabida por todos que estão no jogo da pirâmide, ouvir que agora o Estado deve intervir para salvar os bancos. E que, mesmo assim, e ainda assim, o 1% não vai abrir mão de seus bônus? E o motivo para isso? Segurança financeira, sempre a segurança, e sempre a segurança não participativa.

Que tal se dessa vez a flauta fosse para os que não tem flauta?

Sim, os alunos da USP estão agindo de forma injusta quando requerem privilégios de suspensão individual da lei. Mas não, não estão agindo de forma injusta quando apontam que há algo errado na maneira como a polícia exerce sua prerrogativa de violência. E isso não fica desativado, inutilizado ou silenciado pela resistência a obedecer.

Nossa polícia precisa de uma reforma. Todo mundo sabe disso, mas porque não acontece? Por que os 1% não querem abrir mão do bônus.

Fica cada vez mais claro que é preciso tornar o exercício policial uma questão de comunidade. São as UPPs no Rio. São modos de criar, discutir e manter a segurança, realmente produzidos pela comunidade na qual esta se exerce. Segurança participativa. Só que neste caso a comunidade em questão é de fato uma comunidade meio diferente, um tanto exigente e um tanto experimental. É a USP. É para isso que a sociedade nos paga e é isso que ela espera de nós: pensarmos formas de vida e soluções para problemas que não são as triviais. Porque para as triviais, o resto do mundo está aí para fazê-lo.

Ora, estabelecer uma forma trivial de segurança não é errado, mas é um desperdício. É privar a oportunidade de criar outra solução. Educação universitária não é só um empreendimento de alunos e aulas. É um experimento para inventar novos problemas, novas soluções e novas formas de vida. Reproduzir o mercado? Ensinar a obedecer e tratar os problemas no formato pré-fabricado? Falar fora do lugar, fazer falar fora do lugar, deixar falar fora do lugar …. é isso que se espera da Universidade neste processo. É nisso também que a psicanálise pode trazer alguma ajuda.


4. A História de Milatwa

Milatwa tem por volta de vinte anos e é negro retinto, com dentes brancos e sorriso permanente no rosto. Vestindo uma camisa da seleção brasileira ele me conta que está no Brasil há uns seis meses. Milatwa nasceu em Brazaville na República do Congo. Lá ele nunca tinha visto dinheiro, vivia em uma cultura baseada na troca e no escambo. Quando tinha quinze anos mercenários contratados por mineradoras da Arábia Saudita e do Egito invadiram o bairro onde vivia seu grupo, mataram os idosos, estupraram as mulheres e aprisionaram os jovens. Foi assim que Milatwa foi levado para Serra Leoa, um país vizinho em estado de guerra civil. Lá ele trabalhou como escravo em minas de diamante e turmalina.

Quando Miltawa falou em escravidão eu logo imaginei uma situação como a que encontramos na China ou na Indonésia, com pessoas trabalhando dezenas de horas, restritas em sua circulação e recebendo salários extorsivos. Mas não era bem isso. Tratava-se de escravidão mesmo. Milatwa trabalhava nu, para não levar nem um pequeno um fragmento que seja das pedras preciosas entranhado em seu corpo. A mina era vigiada por mercenários armados e seu trabalho era recompensado com um tanto de comida.

Milatwa organiza então uma rebelião de escravos, no qual 170 pessoas morrem e ele e mais vinte companheiros fogem para as selvas de Serra Leoa. Depois de meses vagando pela floresta eles alcançam um navio. Embarcam num navio que eles não sabem para onde vai. Durante a viagem quinze dos vinte fugitivos são descobertos e jogados ao mar. O fim da viagem é a cidade de Santos, onde Milatwa chega nu, com os cabelos dando nas ancas. Aqui ele é acolhido como Refugiado de Guerra.

Milatwa que nunca tinha ido a uma escola, que vivia em uma cultura de tradição oral, só falava francês, além do dialeto local. Dedica-se a estudar nossa língua e logo se depara com um a figura de um mapa. Um mapa do mundo. Um mapa da América. Um mapa do Brasil. Logo acima do Brasil ele encontra um país que fala francês: a Guiana Francesa. Decide então que ele vai chegar até a Caiena … a pé.

Foi assim que Milatwa começou a andar de Santos até a Guiana Francesa, e chegou até Salvador. E lá, dormindo na praia, foi lentamente sendo acolhido pelas pessoas da Bahia.

Encontrei Milatwa na praia de Ondina em Salvador, junto ao Ocupa Salvador, versão bahiana do movimento Ocupa Wall Street que se disseminou pelo mundo como um protesto contra um certo mundo instituído. Um mundo no qual a experiência de Milatwa acontece todos os dias.



5. Pobreza Real

A história de Milatwa é um exemplo do que chamo de pobreza real. Não há nenhuma redenção nisso, nenhuma felicidade gloriosa, apenas um tipo de sofrimento que não foi transferido para Outro administrar.

Pensando bem somos todos como ele: refugiados de guerra, que nos encontramos ao acaso numa praia de Salvador ou neste Viaduto do Chá. Nós que queremos alguma coisa que nem mesmos abemos bem o que é: chegar na terra de nossa própria língua? Libertarmo-nos do trabalho escravo? Escapar da selva na qual estamos perdidos? Embarcar num navio que não sabemos onde vai parar.

Mas se não fosse a coragem que só a pobreza real daquele que não tem nada a perder pode incutir em alguém, ele jamais teria chegado a Santos.

Não fosse sua ignorância dos perigos e improbabilidades, que cercam a travessia de nosso país a pé, jamais ele teria chegado aonde chegou.

Não fosse sua disposição a reconhecer um laço totalmente inédito, que é este que tento transmitir a vocês hoje, e que é o que nós já temos, independente de onde esta história termine, ele seria apenas mais um da horda, mais um do bando, mais um que precisa de justiça pré-fabricada.

Fonte:http://15osp.org

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