domingo, 19 de junho de 2011

Odebrecht e a luta social


Na luta de classes ganham aqueles que souberem mobilizar o raciocínio e não a apatia nem a irracionalidade. Por João Bernardo

A enorme capacidade recuperadora do capitalismo mede-se, em termos económicos, pela extorsão de mais-valia relativa. Hoje, que as máquinas são capazes de mover forças colossais já não pela manipulação de uma alavanca nem pela pressão de um botão, mas pela simples colocação de um dedo ligando um circuito electrónico, só um capitalismo muito retardatário se interessa pela exploração da mera força muscular. Os operários sempre tiveram cérebro e não se pode trabalhar sem pensar, mas até há poucas décadas atrás os administradores das empresas não se preocupavam com o aproveitamento sistemático da capacidade de raciocínio dos trabalhadores. Henry Ford concebeu até a cadeia de montagem na base da eliminação dessa capacidade de raciocínio. Não penses enquanto trabalhas! — parecia ser este o lema de qualquer boa administração.

Tudo se inverteu depois da crise económica mundial da década de 1970, quando o modelo toyotista se expandiu a todo o mundo. O toyotismo estimula a emoção, organizando práticas rituais que desenvolvem nos assalariados de uma empresa um espírito de grupo que ultrapassa as divisões de classe entre trabalhadores e gestores, e que o capitalismo de Estado chinês soube aproveitar, rentabilizando a herança maoísta. Mas o toyotismo fez muito mais do que isto, e de então em diante os patrões passaram a explorar a capacidade de raciocínio dos trabalhadores, e mais ainda, tiram igualmente proveito da sua inteligência criativa, da afectividade e do entusiasmo. E, não confiando as coisas ao acaso nem à boa ou má vontade de cada qual, os novos sistemas de administração estimulam o exercício da inteligência e o entusiasmo da razão, numa ponta, e, na outra ponta, captam-lhes os efeitos. Qualquer aluno do primeiro ano de uma faculdade de Administração sabe isto, mas os militantes da extrema-esquerda parece que continuam a ignorá-lo.

Este é um site luso-brasileiro, mas como Portugal, coitado dele, anda murcho e com escasso entusiasmo — apesar dos esforços em contrário dos acampados do Rossio — eu vou ilustrar o que geralmente se denomina toyotismo com um exemplo brasileiro. E um exemplo que tem o mérito de ser original.
A Tecnologia Empresarial Odebrecht, TEO, foi sistematizada pelo fundador da empresa, Norberto Odebrecht, e continua a presidir à organização interna da companhia. Foi com este modelo de funcionamento que a Odebrecht cresceu no Brasil e se tornou agora uma das principais companhias transnacionais de origem brasileira, e uma das mais internacionalizadas. A TEO está descrita em numerosas obras de Administração, e escolhi aqui a exposição feita por Moacir de Miranda Oliveira Júnior, professor do Departamente de Administração da Faculdade de Economia e Administração da USP [*].
«A cultura organizacional da empresa, codificada através da Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO), incentiva a predisposição para a participação de experiências, conhecimentos e insights do indivíduo para a coletividade e vice-versa […]». A TEO «incentiva o empreendedorismo interno», escreveu aquele autor, e para isso «delega poder de decisão aos chamados empresários-parceiros, que são colaboradores funcionais com características de empreendedores, responsáveis pela prospecção e consolidação de negócios globais, disseminando informações e conhecimento à rede […]». «Conceitos como codificação do conhecimento existente, gestão do conhecimento, inovação e criação de novo conhecimento fazem parte das estratégias de crescimento internacional da empresa que, entretanto, não podem ser dissociados da figura do empresário-parceiro».

Para que aquela disseminação do conhecimento seja eficaz, a companhia criou fóruns de discussão. «As Comunidades do Conhecimento são ambientes virtuais de troca de conhecimento, por meio de redes computadorizadas». «Dentro da rede mundial do grupo Odebrecht, o conhecimento é articulado corporativamente pelo CIADEN (Departamento de Conhecimento e Informação para Apoiar o Desenvolvimento de Negócios) a partir do conhecimento gerado nos vários projetos internacionais desenvolvidos, que os redireciona às unidades interessadas. Esse compartilhamento se processa através da comunicação direta entre os participantes que procedem de distintos lugares, possibilitando rica troca de experiências, bem como por meio documental. As Comunidades de Conhecimento, um dos fóruns de compartilhamento organizacional, são estruturadas em plataformas de Intranet, e procuram preservar conhecimentos provenientes dos diversos projetos desenvolvidos ou em desenvolvimento na empresa, independentemente se são gerados pelos operários da frente de serviço, ou pelos experts profissionais, preservando, assim, conhecimentos valiosos que propiciam à empresa competências e vantagens».

A companhia instituiu também prémios para destacar «os melhores projetos desenvolvidos pelos vários grupos de projeto da empresa, seja através da reutilização de conhecimento existente, seja na geração de novo conhecimento […]».

E agora, algo de mais importante ainda. «Para a Odebrecht, a transferência do conhecimento segue a lógica da participação colaborativa independentemente de posições hierárquicas».
Chegado a este ponto, peço ao leitor que proceda a um exercício de substituição de palavras, e onde está «participantes» coloque militantes, onde está «operários da frente de serviço» coloque trabalhadores de base, onde está «experts profissionais» coloque dirigentes profissionais e onde está «Desenvolvimento de Negócios» coloque desenvolvimento da luta social. Que imagem de organização resulta desta substituição de termos? Mas existirá hoje na esquerda anticapitalista uma organização assim? Que palavras poderemos colocar em vez de «fóruns de compartilhamento organizacional», «Comunidades do Conhecimento», «Departamento de Conhecimento e Informação para Apoiar o Desenvolvimento de Negócios» e «empresário-parceiro»? Existirão nos partidos políticos de extrema-esquerda e nos movimentos sociais instâncias equivalentes a esses fóruns de discussão, a esse dinamismo criativo interno, a esse estímulo permanente ao uso da razão?

O espírito crítico e o exercício da razão, o gosto pelo debate e o apelo à criatividade foram outrora valores de esquerda, mas hoje só subsistem fora da esquerda organizada. Ora, os grandes empresários estão permanentemente a aprender, fazem-no em todos os lados e sabem aproveitar as lições dadas pela esquerda. E o capitalismo absorve periodicamente muitos dos representantes destacados da esquerda, a ponto de a principal economia emergente ser governada por um Partido Comunista e outra das grandes economias emergentes ser governada por uma burocracia de origem sindical e por políticos criados e formados nos grupos da extrema-esquerda pura e dura. Mas o inverso não se passa e, de cada vez, a extrema-esquerda não consegue aprender com o capitalismo.

Estruturada como está, tanto na hierarquia e no autoritarismo explícito dos pequenos partidos como na hierarquia e no autoritarismo dissimulado — cada vez mais mal dissimulado — dos movimentos sociais, a extrema-esquerda deixa esmorecer o entusiasmo dos momentos de luta. Para preservar essa hierarquia e esse autoritarismo, dando no entanto à base alguma coisa que lhe aqueça o coração, os pequenos partidos da extrema-esquerda sobrevivem pela imposição da disciplina e pela invocação da cartilha. Tristes mecanismos! Correspondem ao que noutra era foi o desprezo de Henry Ford pela inteligência do operário. Por seu lado, os movimentos sociais inventam e propõem místicas absurdas, que, para os dirigentes, têm a preciosa vantagem de adormecer a capacidade da base para o raciocínio crítico e de impedir que quaisquer críticas se tornem públicas.

Estes partidos e estes movimentos sociais terão talvez assim alguma eficácia no combate contra um capitalismo arcaico, mas não conseguirão descobrir e atacar as vulnerabilidades de empresas organizadas como a Odebrecht. Prestem atenção, por favor. Norberto Odebrecht não instituiu uma disciplina interna baseada em textos veneráveis que contêm as verdades fundadoras e anunciam o destino da sociedade. Nem inventou uma mística que transporte os assalariados para o plano do irracional e os ponha todos em sintonia num fuso único. Bem pelo contrário, implantou um modelo organizativo que se esforça por incentivar a capacidade de raciocínio de cada um. Na luta de classes ganham aqueles que souberem mobilizar o raciocínio e não a apatia nem a irracionalidade.

Nota
[*] Moacir de Miranda Oliveira Júnior, «Transferência de conhecimento e o papel das subsidiárias em corporações multinacionais brasileiras», em Afonso Fleury e Maria Tereza Leme Fleury (orgs.), Internacionalização e os Países Emergentes, São Paulo: Atlas, 2007, págs. 226-228.

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