sexta-feira, 6 de maio de 2011

Dezembro e a história do livro sem mãos

Uma tarde, quase noite, como esta que anuncia chuva de luzes, andava Dezembro caminhando normalmente. Por acaso estava pensando em nada, só caminhava pegando pedrinhas e raminhos, e pendurava as pedrinhas em uma árvore, e amontoava as raminhas em um lado do caminho, e lhes colocavam nomes: esse era uma “árvore de pedras” e aquele era uma “montanha de ramas”. Ou seja, como quem diz, Dezembro não só mexia com seus pensamentos, mas também mexia com o mundo.

Tinha, além disso, uns lápis de cor que não sabia quem a havia presenteado. Assim, quando não estava pendurando pedras e amontoando ramas, Dezembro sacava os lápis de sua morraleta e começava a pintar com as cores que estivessem em sua mão. Bem, pois acontece que assim andava Dezembro, cantando uma canção ao ritmo de corrido-cumbia-ranchera-norteña, quando zaz!, ali estava parado, no meio do caminho, um livro.


Dezembro se pôs contente. Sacou suas cores e foi muito decidida a agarrar o livro para enchê-lo de raions, bolinhas, palitos e até um garrancho que se supõe, seria o retrato falado da Panfililla, que assim chamava sua cadelinha que era muito mais sua mulinha (sem ofender as presentes).

Dezembro já se cercava do livro que estava no meio do caminho, já imaginava que a Junta de Bom Governo lhe dava permissão para pintar um mural na parede da escola autônoma, já se via pedindo a uma senhora sociedade civil que lhe tomara a foto dela com a Panfililla, paradas junto ao mural, e já pensava que se por acaso não se parecesse com a Panfililla a pintura do mural, aí mesmo pintava as correções. Não na parede da escola, mas no corpo da Panfililla, obviamente.

Tudo isto ia pensando Dezembro quando, ao acercar-se de tomar o livro com suas mãos, zas!, o livro abriu suas capa e começou a voar. “Ora!”, disse Dezembro com um tom que não deixava dúvida de sua origem plebéia, “este livro voa”. O livro flutuou uns metros e pousou mais adiante, no meio do caminho. Dezembro correu para agarrar o livro, mas antes de chagar, ele voltou a voar.
Dezembro pensou então que o livro queria jogar e também se pôs a jogar. Assim andava a menina correndo de um lado ao outro com o livro voador e, entretanto, a Panfililla já havia engolido meia dezena de pedras e duas dezenas de ramas, e havia feito uma tiragem, fazendo a digestão e, além disso, movendo as orelhas de um lado ao outro, segundo corria a Dezembro atrás do livro.

Aí tardaram, mas chegou o momento em que Dezembro se cansou e parou muito esgotada, estirada ao lado de Panfililla. “E agora o que fazemos Panfililla?”, perguntou Dezembro.

E a Panfililla, além disso, moveu a orelha, porque, todavia, estava tratando de digerir uma pedra de âmbar e não podia resmungar. “Já tenho uma idéia”, disse Dezembro, “vou buscar o senhor Coruja e vou perguntar a ele”.

A Panfililla moveu as orelhas como se estivesse dizendo “vá, eu te espero aqui”, enquanto isso olhava que, contudo, lhe faltava a metade do montinho de ramas para devorar.

Assim Dezembro foi visitar seu amigo Coruja. O encontrou sentado em cima de sua árvore, vendo uma revista com garotas nuas. Aqui o Coruja interrompe o conto e esclarece ao respeitável público:

Não acreditem no Sup, não era uma revista de garotas nuas, era um folheto de lingerie, de Victoria Secrets, diga-se de passagem. Não é o mesmo”.

Bem, pois o Coruja estava vendo uma revista de garotas semi-nuas quando chegou Dezembro e aí no mais, sem anestesia e sem dizer água vá, soltou:

Oi senhor Coruja, por que existem livros que vuam”.[7]

Se diz ‘''voam'’ e não ‘vuam’'''”, corrigiu o senhor Coruja, e continuou: “E não, os livros não voam. Os livros estão nas livrarias, nas bibliotecas, nos gabinetes dos cientistas, quando não são comprados nas mesas fora dos colóquios”.

Existe um que voa”, contestou Dezembro, e em seguida lhe contou o que havia passado antes com o livro voador. O senhor Coruja fechou seu folheto de garotas em roupas de baixo, claro, não sem antes marcar a página em que havia fechado, e disse muito decidido:“Muito bem, vamos investigar, no mais me aguarde um momento porque tenho que por uma roupa adequada”.

Bom”, disse Dezembro e enquanto esperava o senhor Coruja, se pôs a colocar nas ramas das árvores algumas pedras que conseguiu resgatar da gula da Panfililla.

O senhor Coruja, enquanto isso, abriu um gigantesco baú e começou a procurar, murmurando: “mmh... chicote, não... cinta-liga, tão pouco...narguilé, menos... mmh... aqui está!”, exclamou prontamente o senhor Coruja e sacou uma máscara negra.

A vestiu e, tomando um cachimbo, se dirigiu a Dezembro e a perguntou: “Bem, o que te parece meu disfarce?

Dezembro olhou estranhada e, depois de um momento, disse: “de que está disfarçado?

Como de que? Pois de subcomandante! Se o livro me ver como coruja, não irá me deixar aproximar sequer, porque as corujas gostam de muitos livros, já os subcomandantes não os usam nem para nivelar mesas”.

Aqui o Sup interrompe para esclarecer ao respeitável: “Não acreditem no senhor Coruja, os subcomandantes usam os livros, as vezes, quando a lenha não pega...” Ejem, ejem.

Bom, pois lhes dizia que Dezembro e o senhor Coruja disfarçado de subcomandante, desceram da árvore e se dirigiram aonde a menina havia deixado a Panfililla esperando-lhe.

Quando chegaram onde estava a cachorrinha, a encontraram tratando, simultaneamente, de roer a metade de um chinelo e de digerir a outra metade.

Minhas pantufas totalmente Palácio!”, exclamou escandalizado o senhor Coruja e começou a lutar com a Panfililla, tratando de pegar a metade da pantufa que, ainda, era a metade de adiante, ou seja, que, contudo, podia passar como uma pantufa versão minimalista.

Dezembro o ajudou, e algo lhe disse ao ouvido, bem... à orelha de Panfililla que esta imediatamente soltou a metade dianteira da pantufa do senhor Coruja.

“Uff!”, suspirou aliviado o senhor Coruja e, enquanto fazia a análise dos danos, perguntou a Dezembro:

O que disseste para que ela soltasse?

Dezembro contestou sem alterar-se: “Que ia dar a metade da outra pantufa”.

Que?”, gritou o senhor Coruja. “Minhas pantufas, meu bem nobre, meu prestígio, meu status intelectual...!” Nisso, zas!, Dezembro descobriu, próximo de onde estava, o livro voador.

Aí está”, gritou Dezembro ao senhor Coruja.

O Senhor Coruja se acomodou como pode na máscara, acendeu o cachimbo e disse a Dezembro:

Tu me esperes aqui, vou investigar”.

Chegou o senhor Coruja até onde estava o livro voador, que não o reconhecia por seu disfarce de subcomandante.

Como é sabido, os livros contam aos subcomandantes até o que não vem escrito neles, assim que começaram a conversar

Dezembro já estava quase dormindo quando o senhor Coruja regressou e disse:

Lá está. O mistério está resolvido”.

Que passou?”, perguntou Dezembro bocejando.

Elementar, minha queria Dezembro. Se trata, simples e simplesmente, de um caso extremo de ‘livro sem mãos’”, disse o senhor Coruja.

Livro sem mãos? O que é isso?”, perguntou Dezembro.

Pois é um livro que não quer estar em uma estante de livraria ou biblioteca, ou em um gabinete, ou arrumado em um canto, ou nivelando uma mesa. É um livro que quer estar nas mãos de alguém. Que o leia, que o escreva, que o pinte, que o queira”, explicou o senhor Coruja.

Eu!”, disse Dezembro alegremente.

Estás segura? Um livro não é qualquer coisa, não é como um dinossauro come-pantufas”, disse o senhor Coruja enquanto olhava com rancor para Panfililla, que já estava mordiscando o cachimbo do disfarce de Sup do senhor Coruja.

Não é dinossauro, é dinossaura, e sim, eu estou segura”, respondeu decidida Dezembro.

Bom, prova para ver se convence a ele”, disse o senhor Coruja enquanto tratava de arrebatar o cachimbo de Panfililla.

E como faço?”, perguntou Dezembro.

Muito simples, aproxime-te, mas não muito e estende tuas mãozinhas. Se te aceita, então ele irá até você”, lhe indicou o senhor Coruja.

Sai”, disse a Panfililla, perdão, a Dezembro. Limpou as mãos na água porque se recordou que não as havia lavado, se aproximou pouco a pouco do livro voador e, quando acreditou estar suficientemente perto para que o livro viesse sem se espantar, estendeu suas mãozinhas. O livro abriu então suas capas, como para voltar a voar, mas duvidou.

Dezembro estendeu mais suas mãozinhas e disse:

Vem, vem, vem

O livro começou então a voar, mas no lugar de afastar-se, foi pousar nas mãozinhas de Dezembro.

A menina se pôs toda contente e abraçou o livro contra seu peito, tanto que o livro soltou um peidinho: prttt.

O senhor Coruja aplaudiu satisfeito e a Panfililla não latiu, mas arrotou com aroma de pantufa mal digerida.

O senhor Coruja foi então continuar vendo as garotas... perdão, a ler e estudar muito.

Dezembro se pôs a colorir o livro com seus lápis e não viveram muito felizes porque, por um descuido, a Pandililla rasgou a contracapa, o índice, os anexos e sete pés de página.

Tan- tan.

Moral: não deixem nada ao alcance das cachorrinhas, podem ser dinossauras disfarçadas. E já, espero que Daniel Viglietti se faça ouvir esta comunicação tão pouco séria, e que as meninas recordem... para sempre jamais. Gracias.
Participações de Sylvia Marcos, de Gustavo Esteva e do Subcomandante Insurgente Marcos
Conferência coletiva do dia 13 de dezembro à 7:00
Primeiro Colóquio Internacional in memorian Andrés Aubry
San Critóbal de Las Casas, Chiapas, México.

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