quinta-feira, 26 de julho de 2012

“é ou não é piada de salão, tem dinheiro para banqueiro mas não tem para a educação”



Texto de Malu Marzagão (Estudante de Ciências Sociais na UFAL)

A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. (…) Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso.Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas (…). Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer,
teria sucedido o que sucedeu? (GRAMSCI, 1917/2005)

1. Introdução

A greve instalou-se nas instituições federais de ensino superior do Brasil. A grande maioria dos institutos federais e universidades estão parados. O movimento grevista é fruto da indignação perante o descaso do governo federal para com antigas e novas demandas na educação. Descaso esse que gera situações insustentáveis de precarização do trabalho em educação e que se torna mais escrachado diante dos incomensuráveis investimentos governamentais nos grandes eventos esportivos que ocorrerão no país, vide copa do mundo e olimpíadas. O movimento uniu professores, estudantes e técnicos na luta por melhorias no quadro da educação brasileira: condições dignas de trabalho necessárias a uma educação de qualidade.

A Universidade Federal de Alfenas aderiu ao movimento nacional e vem, desde então,realizando atividades junto a população alfenense de conscientização acerca da legitimidade da greve e da situação da educação no país. O objetivo deste texto é propor a discussão: pensar de uma maneira crítica tais atividades mantendo sempre em vista compreendê-las para que se desenvolvam e exerçam eficácia satisfatória. Realizam-se manifestações e passeatas pacíficas, exibições de vídeos, palestras e aulas públicas nas praças da cidade, juntamente a debates, reuniões, exibições de filmes, oficinas, eventos musicais, entre outras atividades que ocorrem na universidade. De tais atividades as que atingem um maior número de pessoas que não possuem vínculo com a universidade são as que ocorrem fora de seus muros. Essas atividades de comunicação têm constituído parte do foco das atividades da greve.

2. Por quem? Para quem?

Partindo do pressuposto de que as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante, fato reforçado pela mídia corporativista, o movimento grevista educacional é visto pelo senso comum como desnecessário e ilegítimo. Quando não ignora o tema, a mídia aborda-o de maneira parcial e tendenciosa ressaltando os prejuízos causados pela greve (queda do consumo no comércio regional, aulas perdidas, paralisações de trânsito causadas por manifestações, etc…) e em momento algum esclarece de maneira adequada os questionamentos acerca da gênese do movimento, suas bandeiras e seu desenrolar. As atividades que acontecem nas praças aproximamcidadãos alfenenses, professores, alunos e técnicos, desta maneira sendo um instrumento de conscientização a respeito da realidade social brasileira para todos aqueles que dele participam de algum modo.

Estamos longe da ilusão de que o movimento funcione como uma mera conscientização acerca do atual cenário educacional brasileiro frente a uma entidade abstrata denominada “povo”, a qual supostamente não possui senso crítico suficiente nem para perceber a situação deplorável dos serviços prestados pelo Estado. Esse movimento é antes de tudo a construção, em cada um de seus participantes, de uma concepção de ser humano enquanto ser prático que interfere, cria e participa de uma realidade historicamente constituída. Se essa postura é perdida o movimento torna-se infértil e até mesmo degenera no seu oposto: manipulação da opnião pública tendo em vista determinados objetivos particulares. Não é digno desiludir iludindo, desmascarar um aspecto mascarando outro. Distante de perverter as bandeiras do movimento essa afirmação é condição de sua plena validade. Marx afirmou que ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e que a raiz do homem é o próprio homem¹. Nesse sentido as aspirações do movimento necessitam ser radicais. É ineficaz “tampar o sol com a peneira”.



3. O absurdo cotidiano

Uma das palavras de ordem do movimento grevista educacional diz o seguinte: “é ou não é piada de salão, tem dinheiro para banqueiro mas não tem para a educação”. Qual o absurdo contido nessa frase que fundamenta a piada? Em outras palavras, de onde vem a sua “graça”? Obviamente na relação invertida do Estado: ao invés de proporcionar uma educação gratuita e de qualidade que segundo a Constituição de 1988 é “direito de todos e dever do Estado” acaba por ser, como uma vez já foi dito, um comitê para gerir os negócios da burguesia. Mas se essa relação invertida do Estado é tão absurda, por que as pessoas em geral parecem percebê-la mas não fazer nada a respeito?

No sistema em que vivemos somos submetidos ao imediatismo do consumo, à mercantilização do tempo e à alienação do trabalho, fatos esses que em sua relação criam e mantêm uma ideologia. Essa ideologia dominante tem como característica naturalizar o que é historicamente construído, ou seja, fazer com que pareçam totalmente naturais todas essas relações perversas de opressão vividas nesse sistema, como se tais relações sempre houvessem existido e são portanto fadadas à eternidade. A ideologia dominante propaga uma falsa consciência e procura mascarar as relações de desigualdade e opressão sob o aspecto da normalidade. É justamente essa relação estranhada do ser humano consigo mesmo que cria esse paradoxo: eu sinto a realidade como absurda, mas ao mesmo tempo materialmente e ideologicamente, sou impelido a reproduzir essa mesma realidade. ²

 
Quando as pessoas param de se mover instintivamente em seu cotidiano e refletem sobre o sentido desse seu agir, surge a consciência do absurdo. Quando paramos por um momento de agir mecanicamente, reproduzindo a mesma rotina dia após dia, refletimos sobre o sentido de tudo isso, nasce um sentimento de indignação: percebemos as condições absurdas a que os seres humanos são submetidos em nossa sociedade. Acordar, escovar os dentes, amarrar os cadarços, trabalhar e receber um salário para sobreviver: é para isso que existimos? O questionamento sobre um cotidiano absurdo na verdade é um questionamento sobre uma realidade que se mostra absurda.

Estamos em uma situação em que o ser humano é forçado a vender sua força de trabalho para garantir sua sobrevivência, assim se submetendo a atividades mecânicas e tediosas nas quais não se reconhece. Ao longo da história construíram-se condições que nos trouxeram até este momento.

Essa situação se desenvolveu ao longo dos últimos séculos. Se os professores, alunos e técnicos estão nas ruas lutando por uma educação e condições de trabalho mais dignas, foi consequência de uma atitude do governo de não valorizar adequadamente a educação e o trabalho. O governo não prioriza a educação e o trabalho porque no sistema capitalista o que é priorizado é a acumulação de renda e o individualismo.
¹( MARX, Karl, Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, 2005)² (As ideologias dominantes) Devem ser “reais” o bastante para propiciar a base sobre a qual os indivíduos possam moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a ação efetiva, e devem empenhar-se, o mínimo que seja, para explicar suas contradições e incoerências mais flagrantes. Em resumo, para terem êxito, as
ideologias devem ser mais que ilusões impostas e, a despeito de todas as suas inconsistências, devem comunicar a seus sujeitos uma versão da realidade social que seja real e reconhecível o bastante para não ser peremptoriamente rejeitada. (EAGLETON, Terry, Ideologia, 2009, p.27)

O corte efetuado pela presidenta Dilma na verba educacional é fruto da instabilidade gerada pela crise internacional do capital evidenciada com mais força em 2008. Como podemos perceber, os fatos estão relacionados. Não devemos compreender o movimento grevista alfenense como um fenômeno isolado, mas sim como um fenômeno mediato, ou seja, que possui relações com inúmeros outros fenômenos. A luta por melhorias na educação traz em seu seio a luta pela libertação do ser humano.4. “Nós somos aqueles por quem estávamos esperando”³

Desse modo a luta do movimento representa uma aspiração legítima, necessária, mais profunda e que não se pode sufocar: a luta pelo fim de relações de opressão social. Se essa é a raiz do movimento, as manifestações realizadas nas praças devem refleti-la. As palavras de ordem e as demais ações devem tocar no ponto principal: a tomada de consciência da população de que a prática é mais que possível, é imanente. A possibilidade de uma educação de qualidade não é nada menos que real. Ela depende das ações de cada membro da sociedade, ações que de modo organizado ganham força.Portanto, devemos nos esforçar ao máximo para eliminar os elementos da ideologia dominante dos nossos discursos: não será utilizando dos artifícios de dominação da burguesia que conseguiremos nossos objetivos. Não será reproduzindo as mesmas ideias vazias que mudaremos a situação. A inteligência da população não deve ser subestimada. Se sob o pretexto de aproximar ou identificar o movimento à população fazemos uso da ideologia dominante que está fortemente disseminada no seu meio, acabamos por reproduzir e fortalecer essa mesma ideologia, assim distanciando do verdadeiro objetivo.

Disse Hegel que a verdade é o todo. Se ao menos não procurarmos enxergar o todo, damos valor demais a uma verdade limitada, parcial, e assim ela se transforma em mentira. Se ignorarmos que a greve educacional é fruto da indignação perante um complexo sistema de relações sociais de opressão e, portanto não apenas uma mera questão de orçamento governamental, perdemos a oportunidade de vislumbrar a totalidade da situação e caím os de volta no ciclo vicioso de um cotidiano fragmentário, de uma realidade mal compreendida em seu complexo de articulações internas. Esse é o momento de percebermos que “nós somos aqueles por quem estávamos esperando”. Bertold Brecht, em sua poesia, Elogio da Dialética, abre nossos olhos:



A injustiça avança hoje a passo firme
Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos
Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga?
De nós
De quem depende que ela acabe?
Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o
retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores
de amanhã
³ ZIZEK, Slavoj, Primeiro como tragédia depois como farsa, 2011,p.128.

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