domingo, 1 de julho de 2012

Legítima raiva



  Recife: uma cidade sem outra perspectiva que não a de ser uma desordenada
aglomeração urbana produzida pelo e para o capital. Esbanjando violência,
medo, autoritarismo, despolitização e isolamento, são incontáveis as
razões que juntas a transformam em uma cidade horrível para se viver.
        O impacto causado pelos recentes ensaios de mobilização que parecem ter
unido a classe média numa pauta urbanística demonstrou como o vazio
político que vivíamos era sedento por qualquer coisa que fugisse da
gaiola burocrática da política partidária/institucional. Numa cidade onde
nada além da repressão, violência, poluição e imobilidade parece
realidade qualquer reivindicação via Facebook por ciclovias ou praças já
se apresenta como um diferencial. E parece evidente que a pauta do
urbanismo denuncia a necessidade urgente de intervir sobre a contínua
destruição do espaço em que vivemos.
          A urbanização da cidade é vítima dos interesses das
“autoridades”. As empreiteiras constroem com os seus
arranha-céus as melhores representações gráficas da nossa
organização social. Resta aos de baixo sofrer com uma sociedade
tão vertical, pois, em cenário tão macabro, não é permitido
experienciar o espaço; são muitos os transeuntes desapropriados
do território que deveria ser público, mas que, na realidade,
está a mercê dos interesses de quem detém o poder.
        São raros os espaços de convívio interessantes para se freqüentar em
Recife. É preciso driblar as artimanhas do espetáculo para poder se
encontrar com o outro em ambientes agradáveis. Os bairros mais precários
parecem ser os últimos redutos da cumplicidade e da solidariedade, pois
para muitos recifenses não existe mais o público, já que o processo de
privatização da vida social atingiu limites insuportáveis.
        Já se tornou clichê reclamar do trânsito ou constatar que não é preciso
mais de hora do rush pra estar num engarrafamento. A mobilidade em Recife
foi assassinada através da hegemonia automobilística que destruiu a
cidade para abrir espaço a avenidas, viadutos e estrutura viária em
geral. Deixando a cidade suja, barulhenta e poluidora como uma fábrica -
a imagem e semelhança do capitalismo. Cada avenida construída significa
mais um espaço assassinado, perigoso, impossível de ser vivido. O que é
estar à deriva e dar uma caminhada em Recife? E o que será com o passar
dos anos? O que será “viver” a Agamenon em baixo de viadutos?
        A impossibilidade de imaginar vida num cenário de viadutos e avenidas é a
impossibilidade de encontrá-la em qualquer outro cenário recifense. A
cidade abre mais espaços para carros quanto mais eles se mostram
ineficientes enquanto meio de transporte e eficientes enquanto
mercadoria.  A chegada da FIAT no estado como promessa de desenvolvimento
nos dá sinais da motivação do governo em implantar um plano de mobilidade
recheado de viadutos e vias expressas. Um plano de “mobilidade” que não
tem a mobilidade como imperativo, mas sim interesses industriais
privados. Uma amostra intrigante de uma inversão da realidade. Uma
realidade que tem a acumulação capitalista como imperativo a frente de
qualquer outro.

* * *

        O leitor costumeiro dos nossos jornais provincianos não deve ter se dado
ao trabalho de chegar até aqui, mas se chegou está gritando: “e o
progresso? E o boom econômico que estamos vivendo?”. Progresso - uma das
armadilhas discursivas favoritas do capital - é o antidepressivo mais
consumido pelos pernambucanos. As promessas dos novos empregos, das novas
fábricas, dos novos aumentos de salário, só podem iludir aqueles que
ainda não perceberem que o caminho do progresso leva inevitavelmente ao
fracasso. Antes de nós, muitos correram nessa direção e, hoje em dia, os
seus jornais trocaram “progresso” por “crise”. Que fique claro,
entretanto, que esses termos não são antagônicos, são os dois lados da
mesma catástrofe: o capitalismo.
        Ainda estamos com os olhos vendados para as questões ambientais. Não
pensamos quanto lixo está sendo produzido por esse pólo industrial criado
ao nosso redor. Não nos questionamos o porquê de nenhum outro estado além
de nós querer a instalação de todas essas fábricas. Só pensamos no
progresso. Ainda não aprendemos que o significado dessa palavra é o de
acumulação capitalista (e não o de “melhoria da qualidade de vida” como
tentam nos convencer). O progresso é uma fera impossível de saciar, está
sempre querendo mais. Por não existir um momento final para o progresso
sua razão só pode ser encontrada no meio do processo. Sem início e fim só
há a eterna necessidade imediata de acumular capital, desenvolver força
produtiva e, numa ingenuidade catastrófica, esperar infinitamente a
realização da ilusão Iluminista de emancipação por meio do “avanço” da
ciência e da tecnologia.
        Compramos como verdade o discurso de que as relações humanas devem estar
submetidas à lógica da produção capitalista, como se nossos interesses
humanos fossem exatamente os interesses da classe
industrial/burocrática/empresarial. Isso é supostamente bom para mim,
para a minha família, para os meus amigos e para minha cidade. Garotos
perdidos, em um mundo difícil de se encontrar, fazem vestibular para
engenharia porque com o desenvolvimento de Suape serão ricos. O que eles
não sabem é que as suas riquezas estão sendo roubadas, que já roubaram de
cada um o futuro, a autonomia e os sonhos. E para isso só foi necessário
apontar para as suas cabeças uma arma letal: o “progresso”.
        O recifense, que nunca soube o que é qualidade de vida nem bem-estar,
torna-se presa fácil do discurso que naturaliza o “progresso” como etapa
necessária e inevitável do processo sócio-histórico local. O recifense,
então, considera as eleições como um possível terreno de mudanças e
aposta que se o povo não tivesse “memória curta” o voto correto seria
realizado. Mal percebe ele que é na vida cotidiana onde se produz o
mal-estar crônico. Um trabalhador cansado nunca se engana. Não é preciso
de memória para descobrir os malefícios do poder e da dominação que se
alastra para todos os âmbitos da vida do “trabalhador honesto”. Não há
“voto consciente”, pois as eleições são e sempre serão o roubo da nossa
capacidade de gerir nossas vidas.

* * *

        Uma vida social voltada para a dominação não podia criar outra sensação
que não a do medo. Graças à palavra medo podemos descrever a nossa cidade
a todos aqueles que nunca estiveram aqui. Não somos a cidade mais
violenta do país, mas, possivelmente, a que mais sente medo da violência
urbana. Essa condição marca o corpo do recifense. Ele sabe que tem que
sobreviver e já desenvolveu uma série de estratégias para isso. O pobre –
supostamente o culpado – é criminalizado e perseguido. Não pode sair de
casa de bicicleta sem que as viaturas do Pacto pela Vida o parem e
apliquem o famigerado baculejo. A humilhação é cotidiana. O rico –
supostamente a vítima – vive num estado de eterna tensão. Numa rua
escura, à noite, ao ouvir uma moto se aproximando, sempre olha para trás.
        Qual a solução? A resposta do recifense foi aprendida com o capital: é
cada um por si, pois assim, fragmentados e isolados, nossa única
responsabilidade coletiva é a manutenção de nossa própria dominação. A
cidade se transformou em um terreno de incessante conflito de baixa
intensidade. Por mais que nos digam o contrário, é preciso ter noção que
há uma guerra em curso. A guerra não é mais isolável no tempo, mas
divide-se numa série de micro-operações, militares e policiais, para
garantir a segurança. A indústria do medo legitima o controle de cada um
de nossos passos. Não passa de balela o interesse das autoridades em
resolver os problemas da violência urbana, pois é graças a esses
problemas que se legitima os investimentos no policiamento das nossas
vidas e na criminalização da pobreza. As câmeras da Conde da Boa Vista
não distinguem os assaltantes dos manifestantes como fazem as palavras de
ordem proto-fascistas do movimento estudantil.
         Essa ordem, no entanto, não se sustenta quando as pessoas ensaiam
participar da política. Ela se retro-alimenta da despolitização.
A triste marca da despolitização recifense é facilmente percebida
na sua estrutura de mídia. Somos reféns de jornais provincianos,
de qualidade risível e de fortes ligações com os poderosos. Sua
própria estrutura já é por si o poder, a autoridade, o "sistema".
Não temos nenhuma estrutura de mídia independente. A triste
situação da cidade coloca o Facebook como principal arma de
comunicação. A "informação" está monopolizada por um agente, por
um discurso único. Precisamos fortalecer nossos canais de
contra-informação!
        Não foi por acaso que as redes sociais tiveram papel fundamental nas
recentes revoltas globais (Primavera Árabe, Dezembro Grego, Movimento dos
Indignados/ Ocuppy Movement). Embora essas mídias sociais corporativas
não tenham sido criadas para servir de base a comunicação e a mobilização
política, por acidente serviram como tal. A situação drástica de
monopólio da comunicação pela mídia corporativa plantou uma urgente
necessidade de comunicação, de produção e consumo de informação livre.
Nas redes sociais as pessoas encontraram lacunas que as permitiram suprir
parcialmente essa necessidade.
        O silêncio individual agora se torna um grito coletivo. Um grito,
todavia, perigoso, pois não os deixemos nos enganar: o Facebook está do
lado da autoridade. Toda informação produzida nele será usada contra o
autor, já que este não tem autonomia para excluir informações e a rede
não se baseia em princípios de anonimato. Ainda assim o surgimento dessas
tecnologias de comunicação mais participativas vem provando que esse
sistema de realidade invertida não se sustenta com politização e
participação. Para a manutenção da dominação é preciso que apenas o
discurso das “nove famílias” chegue aos nossos ouvidos.

* * *

        A necessidade de implodir essa ordem não poderia deixar passar um mínimo
de esforço propositivo, endereçado à resistência e aos próximos passos.
        Aos que caminham ao nosso lado afirmamos: não se deixem impressionar por
aqueles que os chamam de baderneiros e vândalos. Aceitem esses nomes e se
orgulhem, pois como diz um amigo de um amigo: "quando a ordem é injusta,
a desordem é um princípio de justiça". O discurso de deslegitimação das
lutas está tão entranhado no cérebro recifense que até os que se dizem
revolucionários temem desobedecer a ordens policias. Chegamos ao ridículo
de combinar o percurso dos protestos com a polícia. Não se curvem perante
as ameaças policiais de “endurecimento contra os manifestantes”,
continuemos juntos na luta por algo melhor, por uma vida mais digna.
        Queremos uma cidade suja, que admita a sua podridão, na qual as paredes
sejam os espelhos das emoções dos seus habitantes. Muros brancos
esterilizados revelam um povo pacificado e com medo de se expressar.
Contra o monopólio estético das propagandas nada melhor do que uma lata
de spray.
        É um absurdo que o recifense caia de indignação com muros pintados,
protestos que fecham o trânsito e com medidas de ação direta, enquanto
considere normal a brutalidade de uma polícia extremamente autoritária, a
criminalização da pobreza, a violência, o clima de guerra civil e a
completa demência que faz com que ninguém se mobilize para nada com
respeito a sua cidade.
        Não queremos um Novo Recife, exigimos um outro Recife, já passou o tempo
de delicadamente pedirmos por migalhas àqueles que nos exploram. Há muito
tempo chegou o momento da construção diária e apaixonada. Estamos
dispostos a rir e a sofrer no cotidiano. Não como indivíduos perdidos em
um mundo hostil, mas como revoltados que sabem quem são os nossos
inimigos. Nos organizemos, pois, diante da impossibilidade da defesa, só
nos resta a ofensiva.

* * *

Não assinamos esse texto, pois não queremos ganhar os créditos de algo que
não é nosso. As palavras aqui presentes estão circulando por aí, entre
pessoas sem rostos. Limitamo-nos a falar daquilo que está na frente dos
nossos olhos e a não nos esquivar às conclusões. Não assinamos esse texto,
pois a visibilidade só interessa ao controle.

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